Por Bárbara Sacchitiello
Há mais de quatro anos, Phillipe Carrasco é gerente de parcerias de conteúdo do YouTube no Brasil. “Trabalho em uma empresa que dá visibilidade para as pessoas mostrarem sua arte”, descreve. Com essa crença em relação ao propósito da plataforma de vídeos do Google, Phillipe partilha da ideia de que, independentemente da variedade de telas e meios que levem conteúdo às pessoas, elas continuarão buscando por boas histórias. Nesta entrevista, ele analisa como a plataforma mudou o acesso ao consumo de entretenimento desde 2005, quando foi fundada. Ao projetar o futuro do consumo de músicas, clipes, filmes, séries, games, ou qualquer tipo de conteúdo que cative as pessoas, Phillipe acredita que será necessária uma definição mais concreta do modelo de negócio que cada empresa deseja seguir e vê um papel especial para quem conseguir, em meio a um oceano de opções, fazer uma curadoria inteligente. “Somos os donos do nosso tempo e os responsáveis por nossas escolhas. E ninguém quer fazer escolhas erradas. Então, quando um curador faz esse trabalho, a responsabilidade será terceirizada”.
Meio & Mensagem — Nesses quase 15 anos de YouTube, a forma como as pessoas consomem conteúdo e entretenimento mudou bastante. Quais foram as principais transformações que você identifica no período?
Phillipe Carrasco — A primeira coisa que devemos pontuar é o ser humano. Se as pessoas mudaram, obviamente também mudou o consumo. Mas o ser humano continua, como há milhares de anos, compreendendo a vida por meio de histórias. O consumo de vídeo fala muito sobre contar histórias. Hoje gostamos de dar nomes complicados a coisas simples. Storytelling, por exemplo, é algo muito importante, mas as crianças já nascem entendendo esse conceito quando ouvem uma história para dormir. Ou seja, por mais que a tecnologia tenha trazido mudanças no consumo, a intenção do ser humano continua sendo a mesma: ele está indo atrás de histórias e não importa qual é o formato. Falamos muito sobre tecnologia, mas ela não é meio. O digital é a tecnologia que empodera os meios e entender como se conta uma história, em diferentes canais, será o sucesso de quem está produzindo conteúdo. Desde que nos entendemos como um mundo capitalista, quem comanda a distribuição é quem tem o dinheiro. Isso aconteceu com todas as indústrias e, agora, acontece com a da mídia. Há 15 anos não se falava de Google ou de YouTube. A preocupação no Brasil, naquela época, era se as empresas de telefonia iam dominar a distribuição. De repente, os adolescentes que estavam trabalhando com programação se tornaram os maiores donos de capitais do mundo, mudando totalmente a distribuição de conteúdo. Sempre terá alguém no controle da distribuição e, hoje, ainda não temos o consenso se serão as plataformas de mídia ou os grandes conglomerados de conteúdo. Mas, no final do dia, nosso produto não é conteúdo. É gente.
M&M — O YouTube e demais streamings de vídeos trouxeram uma nova dinâmica de decisão sobre o consumo: as pessoas escolhem quando e onde querem assistir filmes, séries e vídeos ou ouvir música. Você acredita que esse consumo de conteúdo sob demanda é irreversível?
Phillipe — Somos o dono do tempo e os responsáveis por nossas escolhas. E ninguém quer fazer escolhas erradas. Acho que todo mundo já passou muito tempo escolhendo um filme na Netflix para assistir. Isso acontece porque, quando o ser humano tem o poder de decisão, ele não tolera fazer escolhas erradas. Já quando alguém faz a curadoria por ele, a responsabilidade é terceirizada. Por isso, ainda são influentes os curadores de conteúdo e de informação. Há filmes que gostamos tanto que, sempre que está passando em algum canal de TV, nós paramos para assistir. Mas esse mesmo filme também está disponível na Netflix, em outros streamings e nós não o escolhemos. Isso acontece por que, quando tomamos a decisão, tem de ser por algo incrível. O consumo sob demanda é, sim, irreversível, mas ainda existirá espaço para quem for capaz de fazer a melhor curadoria e otimizar o tempo e o valor agregado do consumo de conteúdo.
M&M — Vem aumentando a disputa, entre os players de streaming, pela atenção e investimento dos consumidores. Você vê espaço para tantas plataformas nesse segmento?
Phillipe — Quando falamos de plataformas de streaming, de assinaturas, as pessoas são os clientes e, a partir dessa divisão de modelos, temos que entender quem compete com quem e que tipo de modelo econômico queremos ter. Lançamos o YouTube TV e o YouTube Premium, mas, basicamente, nossa plataforma é baseada em uma entrega de publicidade e na venda dessa audiência para anunciantes, na mesma lógica que a TV aberta e cabo. É excelente que exista competição, mas é importante que ela seja compreendida entre os diferentes modelos de negócio, que só têm uma coisa em comum: quem é o dono da propriedade intelectual. A plataforma que mais defender a propriedade intelectual do criador é a que vai vencer.
M&M — Há algum tempo o YouTube vem estreitando a relação com os produtores de conteúdo. Como vê a evolução dos criadores independentes?
Phillipe — Quando me perguntam o que faço, respondo que trabalho em uma plataforma que dá lugar aos criadores de conteúdo para que mostrem sua arte. Somos uma empresa ainda adolescente e, nesse processo, a grande diferença do YouTube em relação aos demais streamings é nosso cuidado em fornecer tecnologia para o criador exibir seu conteúdo. O custo dessa distribuição tecnológica é muito caro, então, ter uma plataforma que possibilite isso, é importante porque dá voz. O YouTube Space é um statement de que nos preocupamos e damos lugar para que esses criadores façam conteúdo cada vez melhor. Falando apenas de criadores de conteúdo endêmico, sem contar os demais grandes produtores com quem o YouTube já trabalha. Hoje, 100% das emissoras abertas de TV são nossas parceiras, seja para trabalhos de divulgação ou para segunda janela. O mercado musical tem sido reinventado pelo YouTube, trazendo uma disrupção de valor agregado para os criadores, tanto músicos quanto gravadoras. Nosso crescimento sempre é baseado em fazer com que qualquer criador, seja de vídeo, música ou de games, tenha uma janela para transmitir sua voz.
M&M — Quais são os maiores desafios do YouTube?
Phillipe — A abertura de conteúdo cria uma ruptura também no modelo econômico. Então, precisamos trabalhar no desenvolvimento de um modelo em que todos ganhem. Esse é o grande desafio e há uma grande preocupação para que toda a cadeia ganhe. Trabalhamos com o modelo de revenue share, mas isso é suficiente? É o melhor modelo? E o maior desafio atual é ter uma estrutura em que todo o pipeline da produção possa ganhar. Talvez nosso próximo YouTube Space, por exemplo, não seja como é este atual. Ainda estamos testando tudo.
“O grande desafio de todo criador de conteúdo é a questão do ego da criação.”
M&M — O YouTube foi uma das plataformas que propiciou o surgimento de influenciadores e personalidades construídas no ambiente digital, independentes da grande mídia. Você acredita que esse interesse pelo conteúdo individual e personalizado tende a continuar?
Phillipe — Acredito que sim, porque o YouTube não é efêmero. Quando estou ouvindo um conteúdo ou assistindo a um vídeo, começo a desenvolver uma relação emocional e sentir o carisma daquele conteúdo. As histórias vão continuar sendo contadas e quem poderá analisar se é bom, não é a plataforma, o diretor artístico ou o produtor, mas é o usuário que viu e foi tocado emocionalmente por aquilo. E se ele foi tocado, continuará consumindo. A força da plataforma é que ela reúne um conglomerado de histórias que não são efêmeras. A pessoa não fica cinco segundos e vai embora. Ela ouve, vê e agrega uma série de emoções nesse processo.
M&M — Quais deverão ser as principais métricas a serem valorizadas pelo mercado interessado na audiência digital?
Phillipe — O watch time é um dos fatores que usamos para aprimorar o algoritmo e orientar a recomendação do conteúdo. Mas, em um nível de influenciadores, obviamente que o view ainda é uma métrica importante, porque a cada visualização que ele ganha, é remunerado. Há criadores que não se preocupam com o ganho de mídia, mas com o engajamento que é trazido para que ele possa fazer outros negócios. O número de inscritos também é importante, pois dá ideia das pessoas dispostas a seguirem seu conteúdo. Há diferentes métricas que envolvem diversos valores agregados e é importante saber qual é a mais importante para os diversos modelos. Para entretenimento, visualização e tempo ainda continuam sendo as principais.
M&M — As próximas gerações ainda irão diferenciar o conteúdo feito por grandes produtores daquele feito por criadores individuais?
Phillipe — Sim, porque entra na questão dos direitos autorais, e eles movem a economia. Um campeonato de futebol, a transmissão do carnaval e uma série de outros formatos movimentam dinheiro. Um jogo oficial de futebol pode ter a mesma quantidade de views de um influenciador que comenta sobre futebol, mas a quantia que gira em torno do campeonato é muito maior. Quando faz escolhas, o ser humano tem expectativas. Não creio, por exemplo, que Game of Thrones seria um sucesso se fosse feito com uma câmera, em um vlog. A qualidade e a chancela dessa produção são únicas. A produção de dramaturgia brasileira, também, é impecável. Sempre encontraremos criações endêmicas, com uma qualidade diferente e até com visualizações maiores, mas a percepção do valor agregado das grandes produções sempre será diferente. Acredito que os próximos youtubers começarão a ter um papel importante como curadores de conteúdo. O conhecimento técnico que um adolescente tem a respeito da audiência do canal dele é o mesmo de um diretor de televisão.
M&M — Já temos exemplos de conteúdo produzido com base em inteligência de dados. Você acredita que, no futuro, muitas produções serão desenvolvidas dessa maneira?
Phillipe — As grandes empresas de mídia conseguem monitorar todo o comportamento da audiência e esse valor é intangível para entender onde e como distribuir aquele conteúdo. Netflix faz isso de uma forma brilhante, porque além de ter um conteúdo muito bom, eles usam muito das estratégias sociais para ter um feedback. O grande desafio de todo criador de conteúdo é a questão do ego da criação. Há uma grande diferença entre os valores qualitativos e quantitativos de consumo, e as informações que as plataformas trazem para as grandes empresas de conteúdo são muito valiosas. Um exemplo recente disso é o especial do Whindersson para a Netflix. Ele irá deixar o YouTube? Claro que não. Mas as informações geradas pela audiência dele mostraram que haveria interesse em abrir uma janela em uma plataforma como a Netflix.
“O conhecimento técnico que um adolescente tem a respeito da audiência do canal dele é o mesmo de um diretor de televisão”
M&M — Essa produção baseada em dados tende a diminuir um pouco a livre expressão criativa na produção de conteúdo?
Phillipe — Não e isso fará, inclusive, os produtores se arriscarem mais. É impossível saber o que a audiência gosta. O que acontece é que a pessoa que cria histórias agora tem uma parametrização. Mas isso vai demandar um exercício criativo ainda maior. Seguimos tendo muitas ideias boas, com execuções péssimas, assim como execuções ótimas, com ideias mais fracas. Nesse ponto, ganha a execução. Ideia boa são aquelas que serão exequíveis.
M&M — O grau de exigência dos consumidores em relação ao entretenimento deve aumentar?
Phillipe — Claro! O ser humano trabalha por meio de comparações e dá mais ouvidos às ideias do que aos fatos. Prova disso é a quantidade de fake news que existe. É tanta informação e tanta oferta que será fundamental, nesse cenário, entrar a figura do curador de conteúdo. Conseguir, seja por algoritmo ou pela inteligência humana, fazer uma curadoria que economize o tempo das pessoas, será a chave do sucesso.
M&M — Qual apelo um conteúdo precisa ter para atrair a audiência? E o que precisará ter para continuar atraindo daqui alguns anos?
Phillipe — Ele precisa ser bom. E o que determina algo bom? É fazer um storytelling com um arco dramático que seja interessante e que responda a uma pergunta dentro da narrativa, como acontece em qualquer história, seja de ficção, jornalismo ou de um influenciador. O que há em comum entre House of Cards e Whindersson Nunes? Os dois contam histórias e ambos chegam a um clímax e, quando o espectador percebe, o tempo passou e ele não sentiu. Não vejo muito como mudar isso no futuro. Acredito que sempre vamos querer ouvir boas histórias.